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"Não sou caminhoneiro"


Dia desses eu estava viajando de carro e parei em um restaurante de beira de estrada, para jantar. Entrei no recinto e percebi entre os presentes, um indivíduo no balcão, bebendo uma cerveja e conversando de forma proeminente. Ele não me viu, mas instintivamente senti que aquela pessoa de alguma forma tentaria puxar conversa comigo. O comportamento ébrio e espalhafatoso dele me sugeriram que eu deveria evitar esse contato.

Notei tudo isso enquanto me encaminhava ao banheiro, para lavar as mãos. Antes que eu tivesse tempo de ligar a torneira, o citado entra no banheiro. 

- Mas É estrada hein? - ele falou, dando ênfase no "É", enquanto se encaminhava ao vaso sanitário.

Pensei que pudesse ser uma metáfora para essa longa estrada da vida. Ou talvez ele apenas estivesse se referindo à distância de Uruguaiana até Alegrete. Na dúvida, respondi com um jab verbal:

- Pois é, né?

O indivíduo começa a falar coisas de caminhoneiro. Não prestei muita atenção, apenas fui jabeando verbalmente, enquanto lavava as mãos: "bah", "hum", "pois é". Só percebi a gravidade da situação quando ele me perguntou:

- Carregou hoje?

Uruguaiana é uma cidade com muitos profissionais do transporte, por causa do porto seco. Apesar de morar há alguns anos na cidade, me bateu uma dúvida: "caminhoneiro" pode ser ofensivo?  No último momento, decido mudar a palavra:

- Não... Não sou motorista.

- Tu não é motorista? - Ele responde, meio incrédulo, parecendo não entender o significado da minha frase.

-É... não sou caminhoneiro - complementei, tomando coragem.

- TU NÃO É CAMINHONEIRO? - Ele parecia estar em algum lugar entre o atônito e o ofendido. Na dúvida, fui saindo do toalete.

-É, não sou caminhoneiro, não... - e fui acenando enquanto me retirava.

"Ah tá", ele responde, complementando com alguma frase cristã desejando algo de bom para a minha vida.

Enquanto eu aguardava o meu pedido na mesa do restaurante, ele reaparece. Se aproxima mais do que deveria, me olha bem de perto e exclama:

- BAH, DESCULPA... ACHEI QUE ERA O MEU IRMÃO!

Ele estende a mão para se desculpar. Desvio a mão de leve, como se estivesse bloqueando sutilmente um jab desferido por ele. Tentei defender meu espaço sem perder a cordialidade, além de evitar o contato físico. Foi um bloqueio, mas também um cumprimento à mão estendida.

Ele então se afasta, se desculpando alegremente. Vai para o balcão e faz mais um pedido. Eu vou para o caixa pagar o meu jantar (e mais um Magnum vegano). Quando estou saindo do restaurante, ainda o avisto uma vez mais, tomando uma Coca-Cola e comendo uma cueca virada, de pé no balcão.



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