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Mostrando postagens de 2022

O Peido e a Impermanência

Publicado na revista Litera Livre, edição 21 (Mai/Jun 2020)   O peido (e desde já peço que me desculpem pelo linguajar, mas tal palavra tem poucos sinônimos em nosso idioma) tem uma característica social, eu diria. Ele nos mostra a vacuidade de todos os rituais sociais de que participamos.  Explico: imagine peidar, como peida em casa, durante uma reunião de trabalho (ou em uma confraternização com colegas). Imaginou?  Enquanto nos esforçamos para segurar aquele gás, ele tenta nos mostrar que os fenômenos são vazios (ou gasosos?). Não possuem uma essência em si mesmos. É tudo um teatro social. Interpretamos personagens e negamos a nossa vontade. Construímos cenários e nos apegamos a eles como se fossem reais, como se tivessem um sentido em si mesmos.  “Cada momento é novo”, teria dito Saikawa Roshi, monge zen-budista. É uma frase que nos mostra a impermanência de cada momento de nossas vidas, que se esvai a cada novo segundo. Um simples flato nos mostra a importância de atentarmos para

"Não sou caminhoneiro"

Dia desses eu estava viajando de carro e parei em um restaurante de beira de estrada, para jantar. Entrei no recinto e percebi entre os presentes, um indivíduo no balcão, bebendo uma cerveja e conversando de forma proeminente. Ele não me viu, mas instintivamente senti que aquela pessoa de alguma forma tentaria puxar conversa comigo. O comportamento ébrio e espalhafatoso dele me sugeriram que eu deveria evitar esse contato. Notei tudo isso enquanto me encaminhava ao banheiro, para lavar as mãos. Antes que eu tivesse tempo de ligar a torneira, o citado entra no banheiro.  - Mas É estrada hein? - ele falou, dando ênfase no "É", enquanto se encaminhava ao vaso sanitário. Pensei que pudesse ser uma metáfora para essa longa estrada da vida. Ou talvez ele apenas estivesse se referindo à distância de Uruguaiana até Alegrete. Na dúvida, respondi com um jab verbal: - Pois é, né? O indivíduo começa a falar coisas de caminhoneiro. Não prestei muita atenção, apenas fui jabeando verbalme

Aproveite o Silêncio

"Words like violence Break the silence" Enjoy The Silence - Depeche Mode Eu gosto do silêncio. E sempre desconfio de pessoas que não suportam a quietude. Quase sempre são pessoas em quem não podemos confiar. E invariavelmente, pessoas barulhentas são pessoas chatas. O silêncio me traz paz. E o que mais posso querer além de paz? Mais importante que poder, mais importante que dinheiro.  Mais importante, até mesmo, do que ser importante. O silêncio externo nos obriga a ouvir o barulho dos nossos pensamentos, nos mostra quem realmente somos. Não podemos interpretar personagens para nós mesmos. Será por isso que tantos odeiam o silêncio?  Já o silenciar interno é muito mais difícil. Os pensamentos não param facilmente. Mas com silêncio externo é um pouco mais fácil para nós, pessoas comuns, encontrarmos um pouco de calma. Uma boia para não nos afogarmos em nosso mar de pensamentos. Curtindo o silêncio no Monte Grappa. Ivorá (RS), 2022. Mas é claro, você não precisa sub

Sonhos do Éd# - O Gato

Dia desses sonhei que eu estava acampado em um galpão, localizado no alto do Cânion da Ronda, no belíssimo município de Lauro Müller, estado de Santa Catarina. Fiona armada de um bom coração Esse galpão ficava dentro de um camping, que também era um santuário de animais, e estava situado há algumas poucas centenas de metros da borda do cânion. Dentro do galpão, circulavam gatos, cachorros e outros animais resgatados de situação de maus-tratos.  De repente, uma pessoa que eu não enxergo quem é, profere a seguinte frase: "O gato anda sempre armado. A arma do gato é um bom coração." E acordei.

O Jogo da Morte

  Publicado na coletânea Prelúdio da Morte, da Editora Darda, no ano de 2020.   Semana passada, encontrei uma cadela agonizando em uma poça de sangue, perto de uma esquina. Largaram ela atropelada, na sarjeta. Ainda botaram umas folhas de jornal na cara, para ela aguardar a morte bem informada (é esse o futuro do jornalismo impresso?).   Ali, contemplando o sofrimento agoniante do animal, pude constatar as duas certezas da vida de todos nós: morte e sofrimento.   Urubu (?) imaginando as possibilidades em São Lourenço, MG Buscamos distrações o tempo inteiro, seja para ocultar de nós mesmos a certeza da morte, seja para tentar mascarar o sofrimento.   A vida é uma sentença de morte, como bem escreveu Ajahn Brahm, monge budista da tradição Theravada. Quando inicia a nossa existência, recebemos já a nossa sentença: Morte! Mas para finalmente cumpri-la, precisamos, todos, passarmos por uma vida de sofrimento. Pode ser uma vida longa ou curta. Com muita ou pouca insatisfação.

Ouvindo Poema na Lagoa da Conceição

Eu tenho alguns hábitos de observação, que desenvolvo desde criança. Um deles é tentar elaborar um "perfil" de algumas pessoas com as quais tive contato, tentando imaginar uma história pessoal com base no que considerei sobre ela.  Mais ou menos como o Mário Prata examinando os indivíduos presentes na sala de espera do analista, em uma crônica que ele escreveu lá na década de 90. Nas férias, por ter mais tempo disponível, nada mais natural do que aumentar minha dedicação a essas contemplações. Em uma viagem para Florianópolis (SC), em 2019, fiquei em um camping na Lagoa da Conceição. Lá eu vi, na cozinha comunitária do estabelecimento, um senhor aparentando uns 50 anos. Ele estava sozinho ali, mexendo em seu notebook. Um fedor de maconha se espalhava no ambiente. Ele me cumprimentou com bastante simpatia e mantinha sempre um sorriso no rosto. Mas apesar de simpático, ele tinha algo de nostálgico, talvez até uma tristeza, o que me despertou a curiosidade. Lagoa da Conceição, F